
Após 155 anos da aprovação da emenda constitucional que pôs fim à
escravidão e 56 anos depois da entrada em vigor do Civil Rights Act, que
tornou inconstitucional a segregação racial e quaisquer outras formas
de discriminação nos Estados Unidos, milhões de norte-americanos foram
às ruas para protestar contra a sistemática prática policial de
violência contra os cidadãos negros daquele país.
“The arch of History is long, but it bends towards justice”,
dizia Martin Luther King. O longo arco da História americana curvou-se
em direção à justiça sempre que negros e brancos se juntaram para fazer
valer a mais importante passagem do documento que em 1776 fundou a
nação. “Todos os homens são criados iguais e com direitos inalienáveis à
vida, à liberdade e à busca da felicidade”, se lê na Declaração de
Independência. Em dois séculos e meio, a História americana alternou
períodos de conformismo com momentos em que uma maioria social e
política se formou para encurtar a distância entre o ideal proclamado e a
realidade vivida. Vivemos uma dessas conjunturas críticas.
O
assassinato de George Floyd por um policial da cidade de Minneapolis
pode vir a ser o gatilho de um realinhamento de forças sociais e
políticas de longa duração nos Estados Unidos, com efeitos para além das
fronteiras do país. As manifestações que se seguiram não apenas reduzem
ainda mais as chances de reeleição de Donald Trump, já abaladas pela
avaliação negativa do seu desempenho diante da pandemia, como também dão
impulso a tendências que podem levar a uma derrota histórica do Partido
Republicano em novembro deste ano.
O partido de Abraham Lincoln
foi colonizado ao longo das últimas décadas pelo fundamentalismo
religioso, pela xenofobia e pelo racismo (não dito, mas praticado, como
transparece nas diversas medidas aprovadas em Estados dominados pelo
partido para dificultar o exercício do voto por negros e latinos). O
Grand Old Party, quem diria, terminou sequestrado por um político sem
ideais ou escrúpulos, como Donald Trump.
Pesquisas de opinião
mostram que os democratas consolidam progressivamente uma ampla coalizão
majoritária. A indignação contra o atual presidente fornece a energia
que provavelmente levará jovens, negros e latinos às urnas em maior
número do que quatro anos atrás. A vantagem do candidato democrata entre
as mulheres não tem precedente histórico. Além disso, o partido está
recuperando parte dos votos dos brancos de menor escolaridade e seu
candidato presidencial está à frente entre os maiores de 65 anos.
Joe
Biden na Casa Branca com maioria democrática nas duas Casas do
Congresso tornou-se uma possibilidade real (basta o partido conquistar
três cadeiras no Senado e terá a maioria, com o voto de Minerva da
vice-presidente). Sim, no feminino, pois é dado como certo que Biden
terá uma companheira de chapa, ao que tudo indica, uma mulher negra.
Não
é certo, mas é possível, mesmo provável. Se acontecer, a vitória será
do partido que espelha no seu eleitorado e nos seus representantes
eleitos as transformações culturais, comportamentais e demográficas da
sociedade americana, contra um partido agarrado à nostalgia de uma
América em que negros, latinos e mulheres eram cidadãos de segunda
classe, a homofobia era a regra e as energias fósseis, sinônimo de
progresso. Tão ou mais importante, será a vitória de um partido que,
além do apoio de grupos específicos, conquistou corações e mentes do
cidadão comum para a necessidade urgente de civilizar o capitalismo
americano com a adoção de políticas sociais abrangentes, em especial na
área da saúde.
A admiração basbaque de Bolsonaro por Trump é
conhecida. Eles têm afinidades, a começar pela falta de empatia com o
sofrimento humano e a insensibilidade em relação às injustiças sociais.
Para o presidente americano, George Floyd foi apenas mais um negro morto
pela polícia. E daí? Perante os protestos, brandiu a ameaça de chamar
os militares. Obteve uma resposta à altura de Forças Armadas que bem
compreendem o seu papel numa democracia: repúdio. O mais eloquente vindo
de ninguém menos que o general James Mattis, ministro da Defesa até
dezembro de 2018, que acusou Trump de dividir a nação e infringir os
direitos constitucionais dos cidadãos americanos ao ameaçar os
manifestantes com o uso das Forças Armadas. O atual chefe do
Estado-Maior Conjunto fez um mea culpa público depois de acompanhar Trump numa encenação política diante de uma igreja perto da Casa Branca.
A
provável virada política nos Estados Unidos é um alento para as
democracias. Indica que a maré montante de líderes direitistas de índole
antidemocrática pode estar retrocedendo. E não por motivos fortuitos,
mas porque, uma vez no governo, os mesmos atributos antiestablishment
que os tornaram eleitoralmente vitoriosos os fazem incapazes de liderar
seus países em tempos que pedem políticos de qualidade superior, e não
mediocridades orgulhosas de sua ignorância.
Estadão
* DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP