O presidente Jair Bolsonaro (PL) puxou, no último dia 13, uma longa fila de motociclistas pelas ruas de Sorocaba (a 99 km de SP). À frente do pelotão motorizado, o candidato à reeleição em campanha era o único que não usava capacete. Além de descumprir lei de trânsito e dar mau exemplo, o chefe da nação se expôs a sofrer graves de lesões na cabeça, caso tivesse um acidente.
Dados da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego) apontam que o uso de capacete diminui os riscos de gravidade de lesões na cabeça, no cérebro e no rosto em 72%. E reduz a probabilidade de morte em até 40%.
Procurados, o Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito) e o Ministério da Saúde não disponibilizaram dados atualizados de mortes de motociclistas que não usavam capacete no momento de um sinistro de trânsito.
A reportagem questionou na última sexta-feira (16) e nesta segunda (19) a assessoria de imprensa da Presidência da República se Bolsonaro sabe que pilotar motocicleta sem capacete é infração gravíssima de trânsito, mas não teve resposta até a publicação desta reportagem.
"A vulnerabilidade dos motociclistas é tão grande que em acidentes ela chega a ser 17% maior que a de ocupantes de automóveis", afirma Antonio Meira Júnior, presidente da Abramet.
"Ficamos preocupados quando vemos, nos dias de hoje, pessoas deixando de utilizar esses equipamentos, que só fazem o bem", afirma Meira Júnior, sem mencionar o presidente da República.
O médico se refere ao fato de o capacete ter sido incorporado ao cotidiano de motociclistas desde 1997, quando passou a ser obrigatório, principalmente nas grandes cidades, onde a fiscalização é maior.
Monitoramento feito pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), da Prefeitura de São Paulo, aponta que na capital paulista em 2020 dados mais recentes, de 13.171 motociclistas observados, apenas três deles não utilizavam capacete, ou seja, 99,98% estavam regulares. O percentual é semelhante no caso de quem fica na garupa.
Em 1979, quando o levantamento começou a ser feito na cidade de São Paulo, apenas 11% dos motociclistas pilotavam com o item de proteção na cabeça.
A médica epidemiologista Deborah Carvalho Malta, professora da Escola de Enfermagem da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que coordenou uma pesquisa sobre uso de capacete e a gravidade das lesões em motociclistas vítimas de acidentes de trânsito afirma quem não usa capacete tem risco 4,46 vezes maior de sofrer traumatismo craniano.
Com dados de 2016, a pesquisa foi feita com informações de serviços de atendimento de urgência e emergência de 23 capitais e do Distrito Federal. "Lesões cranioencefálicas estão diretamente relacionadas ao não uso do capacete", aponta o estudo, que analisou 7.813 acidentados de trânsito.
O trabalho, que contou com a participação de funcionários do Ministério da Saúde, apontou que a prevalência média de uso do capacete entre os atendimentos foi de 81,8%, variando de 97,6%, em Cuiabá (MS), a 53,8% em Belém (PA).
"Precisamos de medidas regulatórias e exigência [do cumprimento] de legislação", afirma a médica sobre as leis de trânsito que obrigam uso do capacete.
O Contran (Conselho Nacional de Trânsito) publicou em 13 de maio uma resolução revisando as normas sobre uso de capacete. As leis de trânsito exigem não só a utilização do item de segurança, mas que ele esteja afivelado corretamente e tenha viseira ou óculos de proteção o presidente também já pilotou com o equipamento impróprio na cabeça durante motociatas, com o rosto totalmente exposto.
Em novembro de 2020, o motoboy Wesley Rodrigues Soares, 22, saiu apressado da casa do sogro, em Caieiras, na região metropolitana de São Paulo, e não afivelou o capacete. Estava a 70 km/h quando o trânsito parou de repente.
"Para não bater no carro da frente, ele desviou e acertou um caminhão", diz Maria da Conceição Otaviano Rodrigues Soares, 42, mãe do motoboy. A moto foi parar debaixo do veículo, o jovem acabou arremessado de cabeça ao para-brisa e, solto, o capacete voou longe.
No total, foram oito traumatismos cranianos e 49 dias em coma, afirma a mãe, que, desde então, acompanha o filho na Rede de Reabilitação Lucy Montoro, na zona sul de São Paulo.
Soares faz tratamento na cabeça e fonoaudiologia para recuperar a fala, além de fisioterapia para voltar a andar. Ele comemora ter abandonado as muletas recentemente. "Não lembro de nada, pois perdi a memória", afirma o motoboy, que reconhece que sua situação poderia ser outra se tivesse afivelado o capacete corretamente.
A fisiatra Linamara Rizzo Battistella, professora da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e idealizadora da Rede Lucy Montoro, diz que as lesões encefálicas, como as de Soares, respondem por 28% de todos os atendimentos na instituição por causa de acidentes de trânsito.
"E a tragédia é que isso incide predominantemente em adultos com idade entre 31 e 45 anos, uma fase da vida em que se imagina ter maturidade", afirma a médica, dizendo que equipamentos de segurança mal colocados, ou a falta deles, são as principais causas desses traumas que provocam sequelas, como alterações anatômicas e funcionais, às vezes para a a vida toda.
Para a médica, a falta de bons exemplos, no caso do presidente, e de punição, ajudam a lotar serviços públicos de saúde com acidentes. A saída, afirma, é o próprio motociclista se conscientizar de que é preciso usar equipamentos e estrutura de forma adequada. "A cabeça é para-choque de moto."
Segundo o Detran-SP (Departamento de Trânsito de São Paulo), 6.500 multas foram aplicadas neste ano a motociclistas sem capacete no estado. O número é 11% menor que as 7.300 infrações anotadas no mesmo período de 2019, ou seja, antes da pandemia.
Também caiu em 36% a quantidade de recursos de pilotos de moto multados por falta de capacete nas juntas do Detran, no mesmo período. Segundo o departamento, foram 620 tentativas de reverter a autuação nos seis primeiros meses de 2019, contra 395 em 2022.
Questionada se o presidente Jair Bolsonaro foi multado por pilotar motocicleta em público sem capacete pelas ruas da cidade, a Prefeitura de Sorocaba afirma em nota que a Secretaria de Mobilidade "vai verificar as situações apontadas quanto ao cumprimento do Código de Trânsito Brasileiro".
Em junho, a bancada do PT no Senado enviou um ofício ao ministro da Justiça, Anderson Torres, cobrando providências sobre a insistência do presidente em dirigir moto sem a proteção.
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O QUE DIZ A LEI
- Uso obrigatório de capacete nas vias públicas por condutor e passageiro de motocicleta, motoneta, ciclomotor, triciclo motorizado e quadriciclo motorizado
- Equipamento precisa estar afixado à cabeça por cinta jugular e engate por debaixo do maxilar inferior
- Deve ter selo do do Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia)
PUNIÇÃO
As penalidades variam para cada descumprimento de regra envolvendo capacete vão de:
- Infração leve, com 3 pontos na CNH e R$ 88,38 de multa
- a gravíssima, com 7 pontos na CNH e multa de R$ 293,47
ViISEIRA
Deve-se utilizar capacete com viseira, ou na sua ausência, óculos de proteção
- Óculos de proteção precisam permitir a utilização simultânea de óculos corretivos ou de sol
- Fica proibido o uso de óculos de sol, corretivos ou de segurança do trabalho em substituição aos de proteção
- Quando a moto estiver imobilizada, independentemente do motivo, a viseira pode ser levantada, devendo ser abaixada quando o veículo voltar ao movimento
- No caso dos capacetes modulares, além da viseira, a queixeira deve estar totalmente abaixada e travada
- Em modelos com queixeira é permitida pequena abertura de forma a garantir a circulação de ar
NA CABEÇA
72% menor o risco de gravidade da lesão para quem usa capacete
40% menor a probabilidade de morte
NAS RUAS
36%* dos mortos no trânsito estavam em motocicleta, veículo com maior percentual de óbitos em acidentes
NO HOSPITAL
53%** das vítimas de acidentes de trânsito atendidas na Rede Lucy Montoro são motociclistas
2,9%*** dos motociclistas atendidos em serviços de emergência e urgência tiveram traumatismo cranioencefálico
12%*** foram atingidos na cabeça, pescoço ou coluna
4,46*** vezes é maior o risco de quem não usa capacete ter traumatismo cranioencefálico
*Em 14/9/22
**Primeiro semestre de 2022
***Setembro de 2017
Fontes: Contran (Conselho Nacional de Trânsito), Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito), Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego) e pesquisa "Uso de capacete e gravidade de lesões em motociclistas vítimas de acidentes de trânsito nas capitais brasileiras: uma análise do Viva Inquérito 2017", da Escola de Enfermagem da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com base em dados do Ministério da Saúde em 23 capitais e no Distrito Federal. (Folha).