Primeiro, começaram as mensagens desconexas em meados de 2020. Um desconhecido escrevia para a relações públicas Renata Meirelles, 38, como se eles mantivessem uma relação. Ela achou estranhou e o bloqueou.
Ele criou outras contas. Fez mais de 40 perfis e mandou 500 mensagens ao longo de nove meses. "Ele falava como se me conhecesse", lembra ela. Além de lotar sua caixa de mensagens, o perseguidor procurava amigos de Renata, que também o desconheciam.
Depois, as abordagens passaram a ser físicas. Ele descobriu o endereço dela e apareceu em sua casa duas vezes. Ela acionou a polícia nas duas ocasiões, que deteve o homem. A perseguição continuou. Um certo dia, ela estava no cabeleireiro, olhou para fora e ele estava lá.
Renata contratou um advogado e procurou a delegacia para registrar um boletim de ocorrência, mas não obteve facilmente uma medida protetiva --isso porque casos de perseguição costumavam ser classificados como violência doméstica e, como ela não o conhecia, não conseguiu o respaldo.
Foi apenas após a sanção da lei de stalking (nome em inglês para perseguição), em 2021, que conseguiu uma medida restritiva contra o agressor. O homem foi preso por um período, e ela não tem mais notícias de seu paradeiro.
A lei que respaldou Renata completa três anos neste domingo (31) e estipula até dois anos de prisão a quem "perseguir, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade".
Um levantamento realizado pela Folha de S.Paulo apontou que, no ano de 2023, o Brasil registrou 79,7 mil casos de stalking envolvendo mulheres --ou seja, a cada hora, 9 mulheres buscaram uma delegacia para denunciar o crime.
Ao todo, foram 93,1 mil casos em 2023. O valor representa um aumento de 38,5% da quantidade de ocorrências do ano anterior, que foram 67,2 mil.
Os números têm como base boletins de ocorrência enviados pela Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação e com dados oferecidos pelas secretarias de segurança pública. A análise leva em consideração Distrito Federal e todos os estados, exceto Paraíba, que não retornou os pedidos de LAI e assessoria até a publicação desta reportagem.
Especialistas explicam que, apesar de situações como a de Renata existirem, o stalking é ainda mais comum no caso de ex-companheiros não aceitam o fim do relacionamento. Para Teresa Cabral, integrante da Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de São Paulo, o crime está inserido em uma espécie de dinâmica das violências domésticas e não costuma ser isolado.
Cristine Nascimento Costa, delegada da 1ª DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) de São Paulo, considera que a perseguição por meio de redes sociais costuma ser ainda mais comum. "[O agressor] tem mais facilidade hoje de operar o crime, corre menos risco de uma abordagem policial e é muito fácil seguir uma pessoa, criar um perfil fake", diz ela.
Na época em que foi perseguida, Renata expôs o que passou nas redes, chamando a atenção para esse tipo de crime, e recebeu diversos relatos de pessoas que passaram por situações semelhantes.
Depois, mudou hábitos na internet. Entre eles, não posta mais em tempo real e também não responde a mensagens de quem não conhece.
As mulheres são as maiores afetadas pelo crime de stalking; elas já registraram 169 mil denúncias ao longo dos últimos três anos, enquanto os homens somaram 28 mil.
As denúncias que envolvem mulheres representaram 85,7% de todos os casos de perseguição no Brasil no ano passado. Já homens representaram 14,3% de todas as ocorrências de stalking no último ano --13,3 mil.
Em relação aos estados, Tocantins teve o maior aumento. Em um ano, em números absolutos, o estado viu as denúncias saltarem de 557 para 1.271, uma alta de 128,2%.
O segundo maior crescimento proporcional foi de Roraima, com 115%. Entre os anos de 2023 e 2022, os casos no estado foram de 273 para 587. A lista segue com Rio Grande do Norte (78,1%), Rondônia (75,1%) e Pará (73,3%).
O único estado que registrou queda nos casos de stalking foi Mato Grosso do Sul. A reportagem entrou em contato com a Secretaria da Segurança para entender essa queda, porém a pasta não respondeu.
Juliana Cunha, diretora da Safernet, destaca que são os estados da região Norte os que detêm os maiores indicadores de violência contra a mulher
Ela analisa que, por mais que os registros de stalking tenham crescido, boa parte das vítimas ainda não denuncia. "Temos a percepção de que a internet é é difícil de a polícia investigar, faltam recursos humanos e técnicos para se realizar este tipo de verificação."
PERFIL DAS VÍTIMAS EM SP
Na cidade de São Paulo, 88,7% das vítimas de stalking entre 2021 e 2023 eram mulheres. Ao todo, 14,6 mil registros foram feitos por pessoas do sexo feminino e 1.700 do masculino.
Além disso, as mulheres entre 30 anos concentram grande parte dos casos na capital (33,8% dos registros).
Na maioria dos boletins de ocorrência de stalking (61,4%), não há registro de qual era a relação da vítima com o agressor. Segundo a SSP, a polícia solicita essa informação em casos de violência doméstica. Nos demais, a relação é descrita no histórico do boletim.
Entre os boletins de ocorrência com informações sobre a relação entre vítima e agressor, mais de 5.000 vítimas mulheres tinham algum relacionamento afetivo com os autores dos crimes, sendo eles classificados como envolvimento amoroso (2.600), união estável (1.300) e casamento (1.100).
A maioria dos casos ocorreu em espaços públicos ou em residências. Porém, a pasta registrou 1.100 casos nesses três anos que ocorreram na internet, via aplicativos de mensagem e redes sociais.
A delegada Cristine Costa explica que o crime é classificado como stalking caso o agressor persiga a vítima de forma reiterada --apesar de a lei não especificar, ela considera que mais de duas vezes é o suficiente para configurar o crime.
Além disso, o stalking tem uma progressão criminosa, que pode ter desfechos trágicos, como feminicídio. Por isso, ela orienta que a vítima procure uma delegacia no início da perseguição --é importante juntar provas, como prints de mensagens, publicações, gravações e até imagens de câmeras de monitoramento.
"Assim, conseguimos frear a progressão criminosa da conduta [do agressor]", diz ela. (Folha Press).