Notícias falsas podem matar?
Uma equipe da BBC investigou
dezenas de casos de informações erradas sobre a covid-19, conversando
com pessoas afetadas e autoridades médicas a fim de verificar os
relatos. A reportagem encontrou relações entre as fake news propagadas
durante a pandemia e episódios de ataques, incêndios provocados e mortes
ao redor do mundo.
Especialistas afirmam que o potencial de estrago indireto causado por
boatos e teorias da conspiração pode ser ainda muito maior.
“Achávamos
que o governo estava usando a covid-19 para desviar nossa atenção ou
que tivesse a ver com o 5G”, afirmou Brian Lee Hitches. “Daí, não
seguimos as regras nem procuramos ajuda antes.“
Brian, 46,
conversou com a BBC por telefone de um leito de hospital na Flórida. Sua
mulher está em estado grave, sedada e com um respirador em uma sala ao
lado.
“Seus pulmões estão inflamados, e seu corpo simplesmente não responde”, afirma, com voz trêmula.
Após
ler teorias conspiratórias na internet, o casal pensou que a doença era
um engodo ou no máximo uma gripe. Mas no início de maio, sua mulher
contraiu o coronavírus.
“Agora me dou conta de que o coronavírus definitivamente não é falso. Ele está lá fora, se espalhando.”
Desinformação perigosa
Uma
equipe da BBC tem investigado o custo humano da desinformação a partir
de dezenas de casos, alguns que não tinham vindo a público ainda. Foram
entrevistadas pessoas afetadas e autoridades de saúde a fim de checar as
histórias.
Os efeitos se espalham pelo mundo.
Boatos na
internet levaram a ataques feitos por multidões na Índia e envenenamento
em massa no Irã. Engenheiros de telecomunicações foram ameaçados e
atacados e torres de transmissão de telefonia celular foram incendiadas
no Reino Unido e em outros países. Tudo em decorrência de teorias
conspiratórias.
No Estado americano do Arizona, um casal ingeriu uma garrafa de um
produto de limpeza de aquários ao pensar, erroneamente, que ele continha
um remédio profilático contra a covid-19.
Envenenamento por produtos de limpeza
O
mês de março se aproximava do fim quando Wanda e Gary Lenius começaram a
ouvir sobre a hidroxicloroquina. O casal notou que havia um ingrediente
aparentemente similar no rótulo de uma velha garrafa guardada na casa
deles.
A droga hidroxicloroquina pode ter o potencial de combater o
vírus, mas ainda há pesquisas em andamento sobre o remédio, por isso
sua eficácia não pode ser comprovada ou descartada de modo seguro.
Nos
últimos dias, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu retirar
temporariamente a hidroxicloroquina da sua lista de medicamentos em
estudo para tratar a covid-19. Com base em um estudo publicado na
Lancet, a instituição alegou que não estava claro que o medicamento
apresentava o nível de segurança necessário. Mas o estudo em questão
sofreu diversos questionamentos sobre a confiabilidade dos dados e foi
retirado da plataforma. Em seguida, a OMS decidiu retomar os estudos com
a droga.
Especulações sobre a eficácia da hidroxicloroquina contra a covid-19
começaram a circular pela internet na China no fim de janeiro. Veículos
de imprensa, inclusive estatais, citaram estudos antigos sobre seu uso
como um remédio antiviral.
Pouco depois, um especialista francês
anunciou resultados promissores. Ainda que a pesquisa tenha sido
amplamente questionada, o interesse em hidroxicloroquina disparou. Ela
foi citada, com níveis distintos de ceticismo, por diversos veículos de
imprensa e figuras influentes, a exemplo do executivo-chefe da Tesla,
Elon Musk, e o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.
A droga
passou a figurar também em entrevistas de autoridades na Casa Branca e
em tuítes do líder americano, Donald Trump. “O que nós temos a perder”,
disse em 3 de abril. “Tome.”
Em meados de maio, ele disse ter
tomado a droga, seguindo seu próprio conselho. Cada menção do presidente
dos EUA resultava em picos de comentários e buscas sobre a droga,
segundo dados da ferramenta de monitoramento online CrowdTangle.
São raros os relatos de overdose da hidroxicloroquina, mas a ansiedade decorrente da pandemia levou pessoas a medidas extremas.
Na
Nigéria, um aumento do número de pessoas com envenenamento por
hidroxicloroquina levou autoridades de saúde do Estado de Lagos a
alertar a população contra o uso da substância.
No início de
março, um vietnamita de 43 anos deu entrada em uma clínica especializada
em envenenamento em Hanói após ingerir uma dose enorme de cloroquina.
Ele estava avermelhado, trêmulo e incapaz de enxergar direito. O diretor
da unidade de saúde, Nguyen Trung Nguyen, afirmou que o paciente teve
sorte de ser atendido rapidamente, pois poderia ter morrido.
O americano Gary Lenius não teve tanta sorte. O produto de limpeza
que ele e a mulher Wanda ingeriram continha uma substância diferente e
era venenoso.
Em poucos minutos, ambos sentiram tonturas e calor.
Vomitaram e tiveram dificuldade para respirar. Gary morreu e Wanda
acabou hospitalizada.
Ela explicou depois porque tomaram o produto de limpeza. “Trump ficava dizendo que isso era praticamente uma cura.”
Envenenamento por álcool
No
Irã, autoridades afirmam que centenas de pessoas morreram envenenadas
por álcool depois que viralizaram boatos sobre seus supostos efeitos
terapêuticos.
Ao todo, o boato afetou ao menos 796 pessoas até o
fim de abril, segundo Kambiz Soltaninejad, autoridade da Organização de
Medicina Legal do Irã. Segundo ele, essas mortes foram resultado de
“notícias falsas em redes sociais”.
A verdade por trás desse
número é nebulosa em um país onde o álcool é proibido e o álcool ilegal é
frequentemente contaminado. Mas, neste caso, a equipe da BBC viu
rumores da suposta "cura" se espalhando no aplicativo de mensagens
Telegram antes do anúncio oficial do governo sobre as mortes.
Shayan Sardarizadeh, da equipe de desinformação da BBC Monitoring,
observa que o anúncio representou um constrangimento considerável para
as autoridades iranianas - pela proibição ao álcool - e que o número
pode estar subestimado.
A BBC investigou a veracidade de um dos
casos e identificou que um menino de 5 anos ficou cego depois que seus
pais o fizeram ingerir a bebida ilegal como uma tentativa de combater a
doença.
'Meu amigo comeu sabão'
Para além da
hidroxicloroquina, o presidente americano, Donald Trump, fez
especulações também sobre diversas supostas curas da covid-19. No fim de
abril, ele sugeriu que raios ultravioletas poderiam neutralizar o
vírus.
“Daí vejo o desinfetante, que derruba o vírus em um
minuto. Um minuto. Pode existir uma maneira de fazer algo desse tipo por
dentro, com uma injeção, ou quase como uma limpeza?”
Ante a
reação negativa de sua declaração, Trump afirmou depois que estava sendo
sarcástico. Mas alguns americanos não viram dessa forma, e serviços de
informação por telefone sobre controle de venenos afirmou ter recebido
ligações acerca do conselho presidencial.
Uma autoridade do Estado americano do Kansas afirmou que uma pessoa
ligou para pedir informações depois que um amigo ingeriu sabão
desinfetante líquido após a fala do presidente.
Duncan Maru,
médico do hospital Elmhurst, em Nova York, afirmou que colegas trataram
pacientes que ficaram bastante doentes depois de ingerirem desinfetante.
“Esse consumo pode ter consequências de longo prazo, como câncer e sangramentos gastrointestinais.”
Incêndios, ataques e conspirações
Redes
sociais têm sido um terreno fértil para teorias conspiratórias. Uma das
muitas relacionadas ao coronavírus que circulam online levou a
incêndios e ataques.
No Reino Unido, mais de 70 torres de transmissão de telefonia celular
foram vandalizadas por causa de falsos rumores de que a tecnologia de
comunicação móvel 5G seria de alguma forma responsável pelo coronavírus.
Em abril, Dylan Farrell, engenheiro da Openreach, dirigia sua
van próximo a Leicester. Havia sido um dia longo e ele encostou o carro
para tomar um chá. Logo depois, começou a ouvir gritos.
Primeiramente,
Farrell pensou que eles fossem voltados para outra pessoa. Mas quando
ouviu “5G” sendo gritado pela janela do passageiro percebeu que era com
ele mesmo.
“Você não tem moral alguma, o 5G está matando a todos”, gritou o homem.
Farrell relata que se não tivesse trancado as portas o homem teria invadido o carro e o agredido fisicamente. “Foi assustador.”
“Temos
visto uma série de teorias conspiratórias há bastante tempo sobre o 5G.
Elas acabaram evoluindo para se conectarem ao novo coronavírus”, afirma
Claire Milne, da Full Fact.
Tensões raciais e ataques violentos
Em
março, o diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom
Ghebreyesus, alertou que a pandemia poderia resultar em outro “inimigo
perigoso”. Ele se referia ao racismo contra pessoas da China e do
continente asiático, mas o vírus exacerbou tensões em diversos países.
Em
abril, três muçulmanos foram atacados violentamente em incidentes
separados em Nova Déli, na Índia. Segundo a polícia, eles foram
agredidos depois que passaram a circular rumores de que muçulmanos
estavam disseminando o vírus.
Em Sisai, uma pequena vila no leste
da Índia, gangues rivais se confrontaram. Isso ocorreu após um ataque a
um garoto muçulmano, novamente uma ação associada aos falsos rumores. Um
jovem perdeu a vida e outro ficou seriamente ferido.
Informações
falsas também circularam entre comunidades étnicas. Em Bradford, na
Inglaterra, boatos afirmavam que pacientes não brancos estavam sendo
abandonados à morte.
Na cidade indiana de Indore, médicos que
tentavam localizar um paciente infectado foram atacados com pedras em
meio à circulação de vídeos no WhatsApp com acusações falsas de que
muçulmanos saudáveis estavam sendo sequestrados por profissionais de
saúde e contaminados propositalmente com covid-19. Dois médicos ficaram
feridos gravemente.
Danos de conspirações
A
desinformação online pode ter consequências diretas, e plataformas de
rede social como o Facebook disseram que removerão as postagens ligadas
ao coronavírus que representam uma ameaça imediata.
Mas a circulação de informações falsas também pode ter efeitos indiretos ou retardados.
Brian
Lee Hitchens, paciente da Flórida que foi seduzido pelas teorias da
conspiração por coronavírus, e sua esposa não tinham uma convicção firme
sobre a doença. Oscilavam entre pensar que o vírus era uma farsa,
ligada ao 5G, e que era uma doença real, mas não grave.
Então eles
seguiram a vida normalmente, apesar dos alertas das autoridades. Brian
não se preocupava com o distanciamento social ou o uso de uma máscara.
A
contaminação pelo vírus o trouxe de volta à realidade. Ele voltou suas
energias para as redes sociais, desta vez para alertar as pessoas sobre
as teorias de desinformação e conspiração.
Especialistas dizem que
publicações como a de Brian podem ser mais úteis no combate a
conspirações do que artigos de notícias e checagens de fatos.
"Uma
das maneiras mais eficazes de tentar corrigir uma informação", diz
Claire Milne, da Full Fact, "é conseguir que a pessoa que fez a alegação
original faça isso sozinha".
'Perdemos muitas vidas para a desinformação'
O
caso de Brian pode ser um caso extremo, mas com a enorme quantidade de
informações circulando — a OMS falou em infodemia — muitas outras
pessoas foram enganadas pelo que leram na internet.
Eles não estão
necessariamente se matando tomando curas falsas. Mas podem estar
diminuindo suas chances de sobrevivência ao não considerar que o
coronavírus é real e perigoso.
Em uma sexta-feira de maio, dois
homens na casa dos 40 anos chegaram a um hospital de emergência no
bairro de Queens, em Nova York. Eles moravam na mesma casa, trabalhavam
em turnos longos e compartilhavam uma cama de solteiro. Ambos estavam
gravemente doentes.
Em poucas horas, o médico Rajeev Fernando viu um deles morrer diante de seus olhos. O outro foi colocado em um respirador.
Fernando perguntou aos dois por que eles não foram ao hospital antes,
e ouviu deles que leram em algum lugar na internet que a ameaça do
vírus não era séria.
"Eles tentaram terapias alternativas, achando que isso é exatamente como a gripe."
Ambos
estavam no grupo de risco da covid-19, que inclui cardíacos, diabéticos
e hipertensos, por exemplo. Mas o médico Rajeev Fernando acredita que
eles poderiam ter se recuperado se tivessem ignorado os conselhos falsos
e procurado ajuda especializada mais cedo.
O professor Martin
Marshall, presidente do Royal College de Clínicos Gerais, afirmou que
ele e seus colegas no Reino Unido constataram que vários de seus
pacientes receberam dicas de postagens que viram na internet — como, por
exemplo, de que é possível fazer um autodiagnóstico prendendo a
respiração, ou de que tomar bebidas quentes ajuda a combater o
coronavírus. Alguns citaram declarações do presidente Trump sobre
desinfetante como justificativa.
Para Maru, médico do Hospital Elmhurst de Nova York, é difícil culpar os próprios pacientes.
"A
desinformação é um problema estrutural. Culpar alguém por ingerir
alvejante ou por ficar em casa e morrer é como culpar alguém que está
andando na rua e é atropelado por um motorista bêbado."
Em resposta à onda de desinformação, plataformas de redes sociais
elaboraram novas regras. Em um comunicado, o Facebook disse: "Não
permitimos informações erradas e removemos centenas de milhares de
postagens, incluindo curas falsas, alegações de que o coronavírus não
existe, que é causado pelo 5G ou que o distanciamento social é
ineficaz". A empresa também diz que colocou alertas em 90 milhões de
peças de conteúdo.
O YouTube diz que não permite conteúdo que
promova curas perigosas e que possui uma série de políticas contra a
desinformação ligada ao covid-19, incluindo contestar a existência da
doença ou sugerir que ela é causada pelo 5G.
O que mais nos espera?
Enquanto
as pesquisas avançam em busca de uma vacina contra o coronavírus,
muitos grupos antivacina e ligados a teorias conspiratórias veem sua
audiência crescer. Eles figuram um risco de saúde em potencial, mas
ainda não imediato.
O que alguns médicos entrevistados pela BBC
mais temem é que o desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus,
que seria um feito incrível, seja minado pela desinformação.
O futuro é assustador, afirmam médicos, por causa do que estamos vendo atualmente.
Brian,
o paciente de coronavírus na Flórida, tem uma mensagem para as pessoas
que ainda acreditam nas teorias conspiratórias que ele apoiava antes.
“Não seja tolo como eu fui, e a mesma coisa que aconteceu comigo e com minha mulher não acontecerá a você.”
Com reportagem de Khue Luu Binh, Flora Carmichael, Alistair Coleman, Shruti Menon, Olga Robinson, Shayan Sardarizadeh, e um jornalista da BBC Persian.